quarta-feira, dezembro 2

A propósito das famosas "escutas telefónicas" no denominado "Face Oculta"

Depois de algum tempo (muito até) sem nada escrever, regresso ao activo para procurar, de quando em vez, trazer à colação assuntos que julgo terem interesse para quem mostre interesse em saber e em debater.

O caso Face Oculta tem merecido inúmeras intervenções públicas, as mais variadas interpretações da Lei, acerca da possibilidade ou não de usar e ou revelar o teor das escutas telefónicas nas alegadas conversas entre um dos arguidos e o Primeiro-Ministro.

O Prof. Dr. Germano Marques da Silva, eminente Professor de Direito e Penalista de reconhecido saber, escreveu recentemente um artigo publicado no JusJornal n.º 892, Wolters Kluwer Portugal, de 19 de Novembro de 2009, o qual subscrevo na íntegra e que na minha intervenção sigo de perto.

A propósito das escutas telefónicas no caso Face Oculta, procurando contribuir para um esclarecimento da interpretação jurídica que deve merecer, face à Lei Processual Penal em vigor, e atentas as muitas interpretações (algumas nem isso são) que têm sido publicadas, por muitos (políticos, jornalistas e até juristas), reflectindo sobre o que diz a lei julgo que a interpretação que dela me parece a mais adequada para aquele caso é a seguinte:

A primeira regra a reter, e a merecer a atenção geral nesta matéria é simples: escuta não autorizada por quem de direito é prova proibida, logo não pode ser utilizada seja para o que for.

Se no decurso de uma escuta legalmente autorizada a uma determinada pessoa, alvo dessa escuta, for interceptada uma conversa com o seu defensor, o procedimento legal é o de o juiz que ordenou a escuta mandar apagá-la. Simplesmente apagá-la. O juiz não pode ponderar se a conversa tem ou não relevância para o processo: tem apenas de ordenar que a mesma seja apagada. Não pode guardar a escuta para uso futuro porque esta em nenhuma circunstância (nenhuma mesmo) poderá ser considerada nem usada, tendo de ser pura e simplesmente destruída.
Se, e do mesmo modo, numa escuta telefónica legalmente autorizada for interceptada uma conversação em que intervenha uma pessoa que goze de regime especial na intercepção das suas conversações, o procedimento é o mesmo: o juiz que ordenou a escuta ao alvo ao tomar conhecimento da conversa com pessoa sujeita a regime de reserva especial declara a sua nulidade e apaga-a. Nem sequer deverá ouvir todo o seu conteúdo, logo que identificada a pessoa sujeita ao referido regime de reserva especial na intercepção das suas conversações, apaga a gravação. Nem sequer lhe interessará ouvir o seu conteúdo, uma vez que o mesmo não pode ser usado em nenhum processo.
Estão sujeitas ao regime de reserva especial as conversações com os defensores, com os médicos, com os ministros religiosos, com o Presidente da República, com o Primeiro Ministro, com o Presidente da Assembleia da República, e mesmo que a conversa revele a prática de crimes, as escutas não têm existência jurídica, são de utilização proibida e, logo que identificadas as pessoas que gozam daquele regime de reserva, devem ser destruídas.
O artigo 11º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal determina que compete ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: «Autorizar a intercepção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República ou o Primeiro Ministro e determinar a sua respectiva destruição, nos termos dos artigos 187º a 190º»
Donde a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações em que intervenham aquelas entidades, quando ordenadas por qualquer outro juiz, constituir uma nulidade insanável (artigos 119º, al. e) e 32º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Mesmo no caso de a intercepção da comunicação não ter sido dirigida contra aquelas entidades, e a intercepção delas resultar de caso fortuito (como sucede quando se ouve um alvo com autorização legal e fortuitamente se intercepta conversação com uma daquelas entidades), a mesma tem também que ser apagada, destruída, porque é nula. O Juiz, logo que detectada a nulidade da escuta, deve pura e simplesmente declará-la, ordenando a destruição dos suportes técnicos.
Se acaso o Juiz tivesse dúvidas e se as remeter ao Presidente do STJ este limitar-se-á a declarar nulas as escutas, não podendo sequer validá-las, pois elas são nulas desde o seu início, desde que foram interceptadas, e o que é nulo ab initio não pode ser convalidado.
Os suportes técnicos das escutas que sofrem de nulidade, nomeadamente da que ora tratamos, não podem nem devem ser guardados até ao final do trânsito em julgado, pois só as escutas válidas devem ser guardadas até esse momento.
Do exposto, se poderá concluir que, por muita curiosidade que tenhamos sobre o teor das escutas (e muitos terão mesmo), elas terão que ser todas destruídas, independentemente da matéria que contenham, não podendo ser ouvidas nem tornadas públicas.
Como referiu jornalista Carlos Magno na Antena 1, citado pelo Ilustre Professor de Direito no artigo que tenho seguido de perto, «há pelo menos duas coisas que um homem decente não faz e que é fazer pelas pernas abaixo e escutar conversas proibidas»
Paciência, pois meus caros, a curiosidade não será desta satisfeita legalmente, embora se presuma que contra todas as proibições um destes dias elas aí estarão na comunicação social.

3 comentários:

Anónimo disse...

Não me acredito que se alguém que estiver a ser escutado ligar para mim e eu disser (porque foi verdade) que matei o Kennedy que essa escuta seja destruída. No dia seguinte tenho a CIA em minha casa. Não?

Anónimo disse...

Uma coisa é muito estranha para mim, um Juiz em Portugal a ignorar a lei? Como pode ele então exercer a sua profissão? Estará ele tão desactualizado, tão ignorante que ao mandar por sobre escuta um (quase na certa criminoso) "inocente" e ele faz umas ligações a (uma pessoa que já tem muitas suspeitas ás costas, e por sinal todas elas são ficção) á referida pessoa e apenas por um motivo que ninguem compreende quer avançar com as investigações mas todos querem que ele fique quieto e as apague?
Se um bandido me ligar e chamada estiver a ser gravada eu seria o primeiro querer que divulgassem a gravação, e penso que o 1º não o quer pois teme o que disse bem como o que houviu...
Não acredito que o Juiz seja ignorante nem desconhecedor da lei, mas tenho uma certesa, ele sabe por que motivos quer continuar a investigação....

Sérgio Martins disse...

É com enorme satisfação que o vejo retornar os posts depois das dificuldades técnicas que teve com a antiga conta.
De facto a justiça tem destas coisas. Se por um lado muitos desejem saber o que consta nas escutas não sendo o primeiro-ministro o alvo de tais escutas, não podem estas ser tidas em conta e imediatamente destruídas, porque este goza de um regime de reserva especial. Se for eu a ser o interlocutor do alvo a ser escutado e estiver a dizer mal do meu patrão, estas já podem ser tornadas públicas, mesmo que isso me venha a prejudicar gravemente. Entendi bem?