Foi há cerca de quatro anos. No âmbito da minha actividade profissional tenho que entrar em muitas casas, umas mais bonitas que outras, umas mais pequenas que outras. Há algumas com aspecto de palácios, entradas faustosas, há colunas e escadarias, vitrais e fontes dentro de casa. De algumas, quase espero ver sair um qualquer sultão das arábias, mas estamos em Felgueiras e sultões ainda não há por cá. Era um dia solarengo, primaveril, ainda frio, e chegados ao local combinado, eu e o proprietário de uma humilde casa com um quintal mais pequeno que muitos terraços e a casa mais pequena que muitas salas, este, passou a explicar. «Não moro aqui», disse, fiquei aliviado pensando: «ainda bem, daqui de fora já dá para perceber que não tem condições nenhumas». Ainda não tinha acabado o pensamento e o proprietário completava: «tenho aqui uns pobres diabos como inquilinos». Não queria acreditar. Batendo palmas para chamar quem lá mora, o proprietário dizia alto «ohhhh da casa!». De lá de dentro, da escuridão quase grutal saiu uma miúda magrinha, não mais de 8 anos, com os olhos mais azuis que alguma vez vi. Questionada quanto ao paradeiro dos pais respondeu com um encolher dos ombros, estava em casa sozinha com a irmã. Mesmo assim o proprietário insistiu em me mostrar a casa. O que vi a seguir ficará para sempre na minha memória.
Na exígua casa existem apenas duas divisões. Uma cozinha e um quarto. Na cozinha, tão negra como uma gruta, onde mesmo de luz acesa era difícil distinguir qualquer coisa, estava uma cadeira de bebé, no meio da divisão e lá sentada, uma outra menina. Com a porta mais aberta a luz chegou até ela e sorriu-me. Tinha três anos segundo a irmã, não andava, não falava, apenas sorria e olhava para o infinito. A roupa quase tão suja como as paredes, e na cara igualmente suja os olhos azuis, como os da irmã, eram faróis implorando ajuda. Dizia a miúda mais velha que estava a tomar conta da irmã porque a mãe tinha ido ao médico e do pai não sabia dele desde o dia anterior. É hábito ele passar a noite fora, caído numa qualquer valeta completamente bêbado. Por vezes a mãe tem que ser internada durante dois ou três dias e o pai não aparece. Aí, dizia a pequena Maria, tenho que faltar às aulas para tomar conta da minha irmã. O mundo à sua volta só dava conta daquela tragédia quando, faltando às aulas, a professora ia à procura dela e ficava a saber da situação.
Aí não aguentei mais. Pedi desculpa ao proprietário e saí, vim embora dizendo que não conseguiria vender aquela «casa». Nunca vi tamanha miséria e saí de lá a pensar por que motivo tinham vindo ao mundo aquelas duas crianças. Para sofrer?
Numa altura em que se referenda a despenalização da IVG (interrupção voluntária da gravidez), alguns dos leitores destas minhas crónicas dirão: era preferível ter abortado, para quê trazer crianças ao mundo sem condições? Outros, que os pais deveriam ser acompanhados, com programas especiais, aconselhamento profissional, apoio familiar. O aborto não é opção. Independentemente do resultado do referendo, jamais esquecerei aquele sorriso cheio de Vida!
Na exígua casa existem apenas duas divisões. Uma cozinha e um quarto. Na cozinha, tão negra como uma gruta, onde mesmo de luz acesa era difícil distinguir qualquer coisa, estava uma cadeira de bebé, no meio da divisão e lá sentada, uma outra menina. Com a porta mais aberta a luz chegou até ela e sorriu-me. Tinha três anos segundo a irmã, não andava, não falava, apenas sorria e olhava para o infinito. A roupa quase tão suja como as paredes, e na cara igualmente suja os olhos azuis, como os da irmã, eram faróis implorando ajuda. Dizia a miúda mais velha que estava a tomar conta da irmã porque a mãe tinha ido ao médico e do pai não sabia dele desde o dia anterior. É hábito ele passar a noite fora, caído numa qualquer valeta completamente bêbado. Por vezes a mãe tem que ser internada durante dois ou três dias e o pai não aparece. Aí, dizia a pequena Maria, tenho que faltar às aulas para tomar conta da minha irmã. O mundo à sua volta só dava conta daquela tragédia quando, faltando às aulas, a professora ia à procura dela e ficava a saber da situação.
Aí não aguentei mais. Pedi desculpa ao proprietário e saí, vim embora dizendo que não conseguiria vender aquela «casa». Nunca vi tamanha miséria e saí de lá a pensar por que motivo tinham vindo ao mundo aquelas duas crianças. Para sofrer?
Numa altura em que se referenda a despenalização da IVG (interrupção voluntária da gravidez), alguns dos leitores destas minhas crónicas dirão: era preferível ter abortado, para quê trazer crianças ao mundo sem condições? Outros, que os pais deveriam ser acompanhados, com programas especiais, aconselhamento profissional, apoio familiar. O aborto não é opção. Independentemente do resultado do referendo, jamais esquecerei aquele sorriso cheio de Vida!
(1) [Expresso de Felgueiras 9 Fev' 07]
(2) Por manifesto lapso na edição do jornal, o último parágrafo desta minha crónica saiu alterado com a introdução, repetida, do final do penúltimo.
1 comentário:
A capacidade de sorrir na adversidade é verdadeiramente fascinante. Toca a alma.
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